"Galaxia em espiral" - Arte Digital de Carlos Zemek.
(Conto de Isabel Furini)
Éramos vizinhos. Morávamos no
bairro Portão, em Curitiba. Ninguém tinha família por perto. Ocupávamos um
predinho de três andares. Pintura amarela escancarada. No térreo e no primeiro
andar, lojas, e no segundo andar, quitinetes de vinte metros quadrados
enfileiradas ao longo do corredor externo, mal iluminado. Os moradores eram um
espetáculo digno de menção, a começar pelo Zé Cervejinha, todo mundo o chamava
assim, ninguém lembrava o seu verdadeiro nome. Zé Cervejinha ganhou esse apelido
porque nunca ficava feliz com uma garrafa. E antes das 23 horas lá vinha ele,
subindo as escadas vagarosamente, com os olhos apertados, a camisa desabotoada
e um bafo insuportável. Atravessava o corredor cambaleando, mal conseguia
colocar a chave na fechadura. Às vezes era auxiliado pelo Yoga (assim chamado
porque era praticante). Ninguém lembrava o seu nome, para todos era Yoga. Sua
quitinete cheirava a incenso. Só sabia falar de espiritualidade. Não era má
pessoa, não. Sua irmã, Dalmira, que ocupava a quitinete úmida e escura do final
do corredor, essa sim era mais perigosa do que cascavel. Uma língua afiada. Ela
decidia. Ordenava. Controlava.
Na outra quitinete, Luciano, um
moreno simpático que estava doente. A quitinete cheia de plantas era de Ramona,
a velha setentona que havia se esquecido de morrer, como todos diziam. Sempre
vestia blusas estampadas de cores berrantes e saias indianas para fingir
alegria e descontração. Coitada! Nunca escutara um “eu te amo” na sua vida.
Nunca fora esposa, nem mãe, nem sequer noiva. Os pais morreram e ela ficou
sozinha, sem profissão, sem família, um eterno lamento. Ela dizia que a
depressão não a abandonava, o problema real era que ela se sentia tão sozinha
que não abandonava a depressão. Na quitinete contígua as duas lésbicas pareciam
felizes. Eram muito prudentes, quase não falavam com ninguém.
Nas duas quitinetes maiores,
dois vizinhos que não participaram da festa: a viúva – com seus cabelos que
chegavam até a cintura e sua saia que nem deixava ver os tornozelos – enfatizou que não celebrava o Natal porque era
festa pagã; e um advogado obeso e fracassado, que foi passar as festas no
litoral.
E nesse Natal nos reunimos.
Estávamos todos sozinhos, menos as lésbicas, é claro. Elas tinham muitas amigas
para festar. Somou-se à trupe estranha a ruiva sardenta. Era muito alta e
esquelética. Havia nascido em Matinhos, mas morava em São Paulo, comprou a
quitinete para relaxar da cidade grande nos feriados. Tentava vender imagem de
triunfadora. Enganou no princípio, mas em pouco tempo os vizinhos foram notando
que a triunfadora que havia morado em Nova York e havia voltado ao Brasil
buscando seu próprio lugar não era assim tão triunfante. O cabelo vermelho fogo não dava para
confundir com o natural. Tinha cara de ratinho assustado, e toda sua pose de
mulher livre e soberana não conseguia esconder. Dizia ter dezenas de amigos,
reconhecimento profissional e homens querendo casamento. Papo furado! Em um
final de semana chegou com um rapaz um pouco mais jovem do que ela. Cara de
safado. Ninguém gostou dele. Cheirava a trapaça. Só veio uma vez. Cansou-se
rápido da tranquilidade do bairro. E a pobre ruiva voltou a ficar sozinha com
seus sonhos.
E nesse Natal nos reunimos. Zé
Pagodinho, Delmira, Yoga, a velha Ramona, Luciano, as lésbicas, a ruiva e eu. O
Yoga ficou encarregado das compras, era um constante ir e voltar do mercado. No
forno da Delmira, um leitão. A velha cozinhava um peru. A ruiva se dedicou a
preparar saladas exóticas e arroz. As lésbicas fizeram várias sobremesas. Eu,
que sou uma nulidade para a culinária, ajudei a descascar batatas e a cortar
tomates.
Os homens colocaram as mesas,
com toalhas muito brancas, enfileiradas no longo corredor e, entre uma
cervejinha e outra, encheram os balões coloridos que foram pendurados no teto.
A ruiva colocou uma árvore de Natal pequena, carregada de enfeites sobre um
banco de madeira, no final do corredor. Por fim, tudo ficou preparado para a
festa. Cada um trouxe sua cadeira e sentamo-nos, sorridentes, ao redor das
mesas. Apesar do leitão bem dourado, do peru – com as asas torradas – das
saladas com molhos desconhecidos, das cervejas, dos refrigerantes, das piadas,
dos risos, cada um de nós cheirava a naftalina e a solidão. Era como se
estivéssemos num barco à deriva. Água por todos os lados. Só céu e água.
Marinheiros em um mar inacabável, parecia que seríamos engolidos pelas ondas
das lembranças. Delmira alternava as críticas, ora criticava o primeiro marido,
ora o segundo. Yoga pronunciava frases bonitas, Zé falava das festas no Rio de
Janeiro e da ex-esposa que tinha um amante, a velha tinha o olhar sem vida,
Luciano queixava-se de dor na coluna vertebral, a ruiva tentava manter a
pose... com sua carinha de rato.
De repente os fogos de artifício
preencheram o céu de cores. Todos nos levantamos das cadeiras, alguns ficaram
apoiados na varanda. E eu olhei o céu e vi essa cascata vermelha, azul e
laranja, linda. Lindíssima! Depois desci os olhos para olhar essa trupe
vagabunda. A solidão dançava sobre nossas testas. Estávamos reunidos e cada um
de nós estava sozinho, segurando-se nos destroços do barco – uma madeira, um
pedaço de convés, um fragmento de armário, a perna de uma mesa. Tentávamos nos manter
flutuando. O barco havia naufragado. Estávamos reunidos nesse Natal e éramos um
grupo de náufragos arrastados pelas correntes do viver. O Natal já não mais
renovava os sonhos. Havia perdido sua magia.
Isabel Furini
é escritora e poeta premiada.
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