quinta-feira, 29 de março de 2012

VOCÊ CONHECE O QUIXOTE DE LA MANCHA?

Será que o Quixote de la Mancha é somente um personagem criado por Cervantes na sua novela? Ou deveríamos dizer no primeiro romance que o mundo conheceu, como alguns consideram a obra?

Há poucos dias, ouvi de uma pessoa desiludida que o Quixote não existe mais. Não existe. Está passado de moda. Escondido em um baú escuro e úmido. O Quixote é coisa do passado.

Será? Ou talvez nossos olhos não foram treinados para descobrir os quixotes nas ruas da cidade, nos barzinhos do Largo, nas salas do Belas Artes, diante de um quadro no Museu Niemeyer, na livraria de usados buscando um título quase desconhecido, na noite de autógrafos lançando um livro para meia dúzia de pessoas, encostados nos vidros das agências de turismo olhando os cartazes com os olhos do desejo, procurando um vestido de noiva em algum atelier, olhando uma bola de futebol e sonhando.
Interessante que eu não consigo ver o Quixote encaixotado em um gênero literário, abarrotado de estúdios literários, morto.

Eu vejo o Quixote, ou os quixotes, todos os dias: é o poeta que vende seu livrinho feito por computador na Rua das Flores; é o ator de teatro que quase morre de fome, mas persiste esperando o êxito de sua próxima peça; é o recém formado que sonha em fazer uma pós-graduação na Europa, ainda que esteja desempregado no momento; é o empreendedor que inicia um pequeno negócio, mas sonha que terá êxito internacional; é o esportista sentado no banco de reserva, mas sonhando com um jogo fantástico. Céus! Este é um mundo de quixotes! E de sanchos!

Quixote enlouquece, outros bebem nos bares, fumam ou ingerem substâncias proibidas, são os quixotes que chegaram ao limite de suas forças. Não conseguem mais sonhar sozinhos. E não adianta que uma sociedade materialista, doente, consumista e hipócrita julgue os outros – não sem antes olhar o verdadeiro rosto no espelho. E não falo dos dentes brancos depois de tratamento, nem do rosto de photoshop, falo do verdadeiro rosto – esse que escondemos dos vizinhos. Já falava Jung que quanto mais reprimimos “a sombra”, mais ela se fortalece.

Vivemos em um mundo de sonhos desconcertantes e de realidades desconcertantes. Um mundo de vazio existencial, de medos, de máscaras, de fantasias. Um mundo de palavras e imagens. Um mundo no qual os quixotes nascem, crescem, envelhecem, morrem e nem sempre conseguem realizar os seus sonhos. Eles deixam algumas sementes de ideias. E novos quixotes nascem e tomam o lugar daqueles que se vão. Como lemos na letra “The Impossible dream”: “Tentar com os braços exaustos alcançar a estrela inalcançável”. É isso mesmo. Sonhar e batalhar. É sempre amanhã que os sonhos podem ser realizados. Hoje é só dia de luta.

“E o mundo seria melhor porque um homem desprezado e coberto de cicatrizes ainda luta com o que resta de sua coragem para alcançar a estrela inalcançável”.
Queridos leitores, existe algo mais “quixotesco” do que isso?

Isabel Furini é escritora e poeta premiada (e-mail: isabelfurini@hotmail.com), autora de “Eu quero ser escritor – a crônica”, da Editora Instituto Memória.

Lançamento livro Eu quero ser escritor


O jornalista Eduardo Bettega, a escritora Isabel Furini e o artista plástico Carlos Zemek, no lançamento do livro "Eu quero ser escritor" de Isabel Furini. Fotografia de Willy Schumann -
Site: http://www.parana-online.com.br/colunistas/347/91440/

No lançamento do livro de minha autoria: "Eu quero ser escritor".

quinta-feira, 15 de março de 2012

Lançamento de livro sobre crônicas

Um livro que analisa o gênero literário crônica será lançado em 27 de Março, 19 horas, no Palacete dos Leões, Av. João Gualberto, 530, Curitiba - entrada franca.
Maiores informações e-mail: isabelfurini@hotmail.com

No final do livro "Eu quero ser escritor - crônicas"de Isabel Furini, publicado pela editora Instituto Memória, o leitor encontrará trabalhos de diferentes autores. O artista plástico Carlos Zemek foi um dos autores convidados e escreveu a crônica "No mundo dos sonhos". No evento o público também poderá apreciar a exposição "O mundo dos sonhos" de Carlos Zemek.
Para ver as obras do artista clique aqui

quarta-feira, 14 de março de 2012

CONSELHO LITERÁRIO DE CAMILA FAMOSA


– O conselho da escritora Camila Famosa foi não escrever com compulsão – afirmei com voz autoritária.

– E como faço? Perguntou o homem tirando os óculos e colocando-os sobre a mesa escura perto de um livro aberto, à direita do copo com refrigerante.

– Eu faço tudo de maneira compulsiva, falo compulsivamente, fumo compulsivamente, até transo compulsivamente, mas, não quero que espalhe essa última informação, hein?... pois odiaria ver mulheres me perseguindo para constatar se é verdade – a verdade é que sou um amante à moda antiga, eu gosto de paquerar mulheres e não gosto mesmo de mulheres tentando me paquerar.
Penteou o cabelo com dedos da mão direita, levantou a cabeça e recolheu o queixo de maneira vaidosa e começou a cantar:

“Eu sou aquele amante à moda antiga
do tipo que ainda manda flores
e escreve, e escreve, e escreve, e escreve, e escreve, e escreve, e escreveeeee...
porque no peito ainda abriga
Recordações de seus grandes amores...”


Além de modificar a letra, como ele cantava mal! Sua voz era rouca. Eu fiz um gesto de desaprovação mexendo a cabeça várias vezes para um lado e para o outro horizontalmente.

Ele tussiu ou fingiu tosser, retrocedeu alguns passos, sentou-se na cadeira de madeira e disse:

– Bem, continuando, eu sou obsessivo compulsivo e se eu não escrever por compulsão e de maneira compulsiva, eu não consigo. Sem compulsão não consigo fazer nada. Imaginem fazendo sexo sem compulsão, eu vou broxar, céus! E tentar escrever assim de fininho, como quem não sabe de nada, não sei, não! Mas sem paixão, sem obsessão, sem compulsão, Nossa Senhora! Isso não será texto, será página em branco. Algo me compele a colocar traços desiguais nas páginas, eu escrevo à caneta, nada de computador, nem modernidades. Já falei, sou um amante à moda antiga. Gosto de papel de verdade, papel no qual seja possível escrever, apagar com borracha, reescrever, riscar, colocar “x” ao lado de frases interessantes, sublinhar, dobrar o canto superior direito da folha, fazer anotações, ou pequenos desenhos nas margens e guardar nas estantes, nas gavetas, embaixo da cama, ou rasgar e jogar de longe no cesto de papéis gritando: Goooollll! Eu sou o melhor!!!

Levantou-se da cadeira. Parecia emocionado.

– E o que acha de deixar a mente em branco para escrever, não pensar em nada? - insisti eu fingindo indiferença.

– Acho bom, muito bom, para quem conseguir. Eu não consigo cara, eu preciso pensar, imaginar, observar os personagens pela fresta da fantasia, e falar deles, falar, falar, falar... ou melhor dito, escrever, escrever, escrever. Que escrevam sem compulsão os grandes literatos, os escritores calmos e disciplinados. Eu não. Minha obsessão é escrever. De manhã, à tarde, à noite. Eu gosto de escrever e odeio escrever. Por isso escrevo. Escrever é emoção – ou emoções. Quase um ritual de morte e renascimento. Quase um bater de asas de morcego na noite.

Olhei-o fixamente. – Você não faria a experiência por uma semana? – Perguntei com voz suave.

O escritor não respondeu, mas retrocedeu e voltou a sentar-se na mesma cadeira de madeira.

– Só por uma semana, escrever sem pensar, o que acha? Seguir o conselho de Camila Famosa?
Ele, vencido, fez um sinal de afirmação com a cabeça. Imediatamente seus olhos fugiram pela janela, rumo à rua poluída de carros.

Uma semana depois entrei em sua biblioteca. Ele estava sentado diante do computador, calmo. Sorridente. Você conseguiu? perguntei.

– Escrever sem pensar?

– Isso.

– Consegui, sim – murmurou.

Aproximei-me para ler no computador o que havia escrito e dizia: “escrever sem pensar, escrever sem pensar, escrever sem pensar”.... fui para a outra página: “escrever sem pensar, escrever sem pensar, escrever...”

– Você repetiu milhares de vezes a mesma frase! ­Gritei.

– Mas não pensei, retrucou ele, não pensei em nada. Eu escrevi. Diga essa verdade para Camila
Famosa: Mente em branco é para escritores autocontrolados. Muitas vozes é o caminho para escritores com múltiplas personalidades. Ser perseguido pelos próprios personagens é para escritores paranóicos, já escrever compulsiva, obsessivamente é para mim. Fazer o quê? Obsessão é destino.

Isabel Furini é escritora e poeta premiada.

O PODER DO LIVRO


O relógio de pêndulo deu oito badaladas. Um som metálico vibrou no ar. Roberto entrou na sala, colocou o paletó escuro e desbotado no espaldar da cadeira e sentou-se. Vestia uma camisa branca, com o colarinho gasto e um pulôver já fora de moda. Olhou o relógio. Um relógio enorme, antigo, de madeira escura e lustrosa, herdada do avô. Depois consultou seu relógio de pulso. Tinha a sensação de que um dos relógios estava defasado alguns segundos.

Dona Irineia saiu do elevador apressada e avançou rapidamente pelo corredor. Abriu a porta. Na parede, um cartaz que dizia: “ PROIBIDA A ENTRADA A AUTORES” em letras grandes e, em letras pequenas: “Deixe seus originais na portaria”. Entrou na recepção, ligou o computador e disse “bom dia” para o senhor Roberto.

– Dona Irineia... pode vir... – pediu ele.

Dona Irineia entrou, abriu as cortinas. Um raio de sol entrou pela janela de vidro, atravessou a metade da sala e caiu como uma torrente de luz sobre a escrivaninha de ébano escuro, cheia de papéis, livros, canetas, contratos. Roberto estava sentado diante da escrivaninha, na cadeira alta com espaldar de veludo vermelho. Às suas costas, o retrato antigo de seu avô, Florêncio, fundador da Editora RT.1.

Nos cantos da sala, caixas enormes, abertas, onde Irineia, todos os dias jogava, com indiferença, os originais que vinham pelo correio. Jogava os sonhos, as esperanças, as fantasias, as suposições, as ambições dos autores nas caixas de papelão. Cérebros, corações, fígados com vesículas apodrecidas de tanta ansiedade na busca da fama ou do reconhecimento. Ela jogava tudo nas caixas de papelão.

Irineia pegou uma faca grande, com o cabo forrado em couro marrom e começou a abrir os pacotes do correio. Chegavam originais de todos os tipos e de todos os cantos deste enorme país. Romances, novelas, contos, crônicas, monografias, teses, livros técnicos e poesias. Chegavam obras dos lugares mais recônditos, das grandes cidades, do campo e dos povoados. Povoados que Irineia mal conseguia localizar no mapa e nem sabia que existiam.

Roberto pegou alguns originais para análise. Sua forma de escolher os livros que seriam publicados no semestre era, no mínimo, peculiar, para não dizer que era uma maneira estranha, extravagante, ou simplesmente, insana. O editor comum obedece a padrões de modernidade, originalidade, gosto popular ou elementos como mudança de perspectiva, quebra de tempo, jogo de palavras, ironia, tipos de discursos e outros.

Roberto era diferente. Como um alquimista em busca da pedra filosofal, Roberto colocou pó de enxofre nos dedos das mãos e manuseou as páginas de um romance, abrindo-o ao acaso. Leu um parágrafo. Tantos anos na Editora deram-lhe uma firmeza inigualável.

– Dona Irineia.... – chamou o patrão.

– Sim, senhor – respondeu ela, enquanto se levantava, empurrando a cadeira.

Ele respirou profundamente e disse com raiva:
– Essa febre de escrever tomou conta da população! Todo mundo quer escrever, é irritante!
Roberto acomodou os óculos grossos sobre o nariz proeminente e alisou seus cabelos grisalhos, longos e oleosos.

– Por favor – pediu Roberto, acendendo um cigarro – Isto é ridículo! Este cara já enviou mais de dez livros... Soltou a fumaça do cigarro no ar. – Ele ainda não entendeu que nunca vou publicar suas obras? Quando vir este nome no envelope nem abra. Jogue fora!

Irineia disse que enviaria a carta padrão. Carta padrão consistia num modelo, onde a obra do escritor era elogiada e a Editora pedia desculpas por não poder incluí-la, falta de espaço na programação. Isso evitava processos e discussões intermináveis com autores inconformados.

Leu uma página e ficou irritado, “vejo um escritor de pulso vacilante, tentando contar uma história, mas sem técnica suficiente. Um trabalho superior a suas forças, megalomaníaco” pensou. – Não é suficiente ter uma história interessante, deve ser bem contada. Deve ser: “Alento de fogo.” Dona Irineia colocou novos livros sobre a escrivaninha: “Sonhos”, “Heróis do presente”, “A Morte de Joana” “Chuva no telhado” e “Mundo em guerra”. Roberto empurrou os óculos grossos de armação preta e enfiou o nariz nos originais de “Heróis do Presente”. Gás Bucal, murmurou.

Fechou o livro e voltou a abri-lo. Leu um parágrafo. Fechou e tornou a abri-lo pela terceira vez.
Não, eu estava certo na primeira classificação: Gás Bucal. Anote,dona Irinéia, Heróis do Presente, é Gás Bucal.

Sempre falava para a secretária qual tinha sido sua avaliação. Fazia anos que ela trabalhava para ele e já não sabia viver sem sua presença calada e submissa. Só uma vez Irineia levantara a voz, dois anos atrás, para defender um livro de amor e traição. Nunca antes, nunca depois.

Pegou o livro “Chuva no Telhado” – Roberto deixou fluir os originais encadernados em cor cinza pelas mãos sensíveis. Passou os dedos pelas bordas e o abriu. Leu uma página, este é pior.

Nos últimos três meses, só os originais de “Lago em Sombra” tinham sido aceitos para edição. Roberto tinha, à semelhança dos alquimistas, a busca incansável. Ainda lembrava seu avô dizendo: Existem dois tipos de editores, os editores alquimistas que procuram a pedra filosofal das palavras e os editores alquimistas que procuram simplesmente o ouro filosofal. Ele era do tipo um.

Seu avô tinha ideado um método infalível de classificar os originais. Tinha relação com o elemento ar. Talvez porque o avô Florêncio fosse de um signo de ar, Gêmeos. E toda sua vida tinha acreditado no destino e nas estrelas.

O método era o seguinte: Ruim, D – Gás estomacal. Bom – C: Gás bucal – Provinha da boca. Muito bom: B – Corrente de vento chega à garganta. Excelente: A – Gás Pulmonar . Obras de grande qualidade chegavam poucas. Extraordinário: AAA- ALENTO DE FOGO – O fogo do corpo e da alma.

Poucas obras “Alento de Fogo” havia recebido na vida. Na realidade, só recebera duas. Há trinta anos, seu avô ainda era vivo, quando receberam uma obra Alento de Fogo. O avô Florêncio estava doente, mas ao ler o texto recuperou-se totalmente e viveu mais cinco anos, com muita energia e vitalidade..

– Só o Alento de Fogo pode dar a vida... ou a morte... – disse o velho.

Dez anos atrás tinha reconhecido, ele sozinho, outra obra Alento de Fogo. Foi fascinante. A cada página que lia recuperava a vitalidade. Fez uma viagem ao redor do mundo. Nada de hotéis caros, de shoppings nem de restaurantes chiques. Caminhou pelas areias do deserto. Escalou as pirâmides, dançou na Ilha de Páscoa diante dos vigias.

Foi feliz durante dois anos. Mas a energia do alento também se esgota. Desde então, só procura o Alento. Há anos que traz os óculos grossos que escondem o desespero de sua alma na procura de um livro especial. Um livro que o tire da monotonia, da mesmice, das preocupações, do vazio da vida. Um livro revelador de um mundo paralelo que fale de suas expectativas, de seus sonhos, acertos e fracassos.

Roberto procurava na literatura, na palavra, a antiga arte da transmutação da mente. Arte anterior às técnicas da mente positiva ou da neurolinguística e outras ervas, que no seu entender, vendiam fantasias... das boas e das ruins, e algumas dessas fantasias eram terrivelmente nocivas à alma.

Roberto procurava na literatura a arte de entender o mundo. E a vitalidade para continuar a viver. A vitalidade que tinha perdido nos longos dias de leitura, na luta constante para analisar os textos com justiça. A análise e a luta com os textos sugaram sua energia. No fragor da contenda ficou míope e não conseguia enxergar a beleza da vida.

Roberto também escrevia. Ler e escrever. Escrever e ler. Sua vida tinha-se debruçado sobre os livros. Sua vida tinha-se esgotado entre letras impressas e folhas de papel. Os livros inéditos se pareciam. Eram como almas sem corpo. Todos pareciam iguais: papel branco oficio ou A4, letra New Roman ou Arial, corpo doze, duplo espaço.

Originais ruins que chegavam a suas mãos eram jogados no lixo. Não lia. Só abria três vezes o livro. Abria o livro, lia uma página e anotava a classificação. Abria de novo e lia dois parágrafos. Abria-o, pela terceira vez e só lia um parágrafo. Ele dava três chances. Só três, para cada candidato.

Originais ruins eram jogados no lixo. Não lia. E não era por falta de tempo. Nem por preguiça. Não lia porque lhe fazia mal, como a carne gordurosa o intoxicava. Intoxicava sua alma, embotava seus sentidos. Em síntese, diminuíam o ciclo de vida de Roberto.

Para Roberto, não ler lixo não era modismo, capricho, nem uma forma de esnobar a literatura. Era sobrevivência. Teve terríveis experiências, um livro mal escrito aumentava sua úlcera, desregulava os movimentos de diástole e sístole de seu músculo cardíaco.

Poucos sabiam que o alimento de Roberto era a literatura. Não só o alimento de sua alma, mas até certo ponto, a literatura era também o alimento de seu corpo. Até suas vísceras precisavam de leitura. Uma página ruim que lia, e seu corpo parecia desmembrar-se.

– Hoje não estou com sorte – pensou, enquanto terminava de ler o parágrafo. Só achou um livro
C. Classificação A e B, lia do princípio até o final. Os outros não, questão de saúde.

Ao final da tarde, recebeu a visita de seu primo José, dono de uma grande editora

– Importa-se demais com qualidade, Roberto – recriminou-o – Marketing. Agora tudo é marketing. Eu dou para o departamento de marketing ver as possibilidades de venda, a gente nunca sabe quando tem um best-seller nas mãos...
– Lembra de nosso avô Florêncio?
– Você sempre foi o neto preferido dele.
– Vô Florencio sempre dizia que um livro é como uma panela de pressão. Tem ar quente... entende, José? Todo livro tem um ar... um alento... o livro ruim é como uma panela de pressão com ar gelado, esfria o sangue nas veias, pois não foi purificado pela arte. Panela de pressão apitando, enfumaçando, é sinal do fogo do artista. Esse fogo fica impregnado em cada página, em cada parágrafo, em cada frase, em cada canto do livro.
– Panela de pressão! – exclamou José e soltou uma forte gargalhada que atravessou
o ar e bateu no relógio. O relógio deu algumas badaladas, longas, sem compasso, arrítmicas.

No dia seguinte, o céu nublou-se, a chuva bateu sobre os vidros da janela. Roberto continuara lendo. Três dias depois, voltou a sair o sol.

Nesta quinta-feira, Roberto chegou à Editora às 8 da manhã, como era habitual.
A luz estava acesa. Entrou. Dona Irineia estava de pé, falando com uma senhora baixinha e muito magra, de cabelos brancos unidos no alto da cabeça por um coque, ao estilo das avós antigas. Vestia com elegância uma blusa azul, com pequenos desenhos vermelhos e uma calça azul marinho.

– A senhora é autora – disse Irineia, sem jeito.
– Bom dia, Senhor . – disse a velhinha, fitando-o com seus olhos azuis, intensos.
– Meu nome é Maysa – apresentou-se e estendeu-lhe a mão direita para cumprimentá-lo, enquanto com a esquerda apertava os originais.
– A senhora não sabe ler? – perguntou Roberto, de forma ríspida, cruzando os braços.
– Sei, claro que sei ler – disse ela recolhendo o braço e pegando o livro com ambas as mãos.
– Pois veja, então, minha senhora! – gritou Roberto, abrindo a porta e assinalando o cartaz – Autores: Proibida a entrada.
– Senhor Roberto – disse Irineia, tentando ajudar a velha senhora – eu a deixei entrar, ela só quer falar sobre o livro. Ficou anos escrevendo e...

Roberto interrompeu sua fala. Pode deixá-lo...
Abriu a porta, entrou e sentou-se em seu lugar. Pela porta entreaberta, viu que a velha continuava em pé, imóvel.

– Fora daqui – disse entre dentes – fora, velhinha, fora. Eu não edito biografias de mortos ilustres, não edito livros de tricô, nem receitas culinárias. Escutou a velha despedir-se e o ruído da porta fechando-se. Roberto colocou enxofre nas pontas dos dedos e abriu um livro. Buscava a cada dia a áurica dos alquimistas, o mercúrio.

– Posso entrar? – perguntou dona Irineia.
Roberto ficou impressionado. Raramente ela entrava sem ser chamada.
– Peço que o senhor avalie este livro, por favor, senhor Roberto. Não tomará muito de seu tempo. Faça esse favor para mim – e colocou o livro sobre a escrivaninha.
– Está bem – disse ele, num gesto resignado, como um capitão depondo as armas.

Roberto abriu o livro. Começou a ler a página, o primeiro parágrafo e nas solas de seus pés sentiu um comichão. Segundo parágrafo e um calor começou a subir de seus tornozelos. Apertou o estômago, o batimento cardíaco chegou à garganta e transformou-se em admiração e em silêncio. Antes de terminar a página, viu um espírito, um dragão vermelho e preto. Um dragão enorme, que devorava as florestas da dúvida, derrubava as montanhas da presunção e arrasava os vales da mediocridade.

– Uma obra prima! – tentou gritar, mas não conseguiu. Sentiu um estouro na garganta... ou foi no peito? Eram cinco horas e o relógio de pêndulo começou a dar a primeira badalada.

Roberto sentiu que seu peito doía. Era uma dor dilacerante. Levou as mãos ao coração . Oh, Deus, pensou, e sentindo a morte chegar, não lamentou sua busca. Não os anos perdidos diante da escrivaninha, nem a janela fechada onde nunca entrava o vento. Não lamentou ter ficado sem amigos, em ter sido abandonado pela esposa. Não lamentou ser considerado estranho ou louco. A única coisa que lamentava era ter que partir da terra sem poder terminar de ler originais com
“Alento de Fogo”. Alento de fogo, alento de fogo, repetia. Abriu novamente o livro e tentou ler...

– Alento de Fogo! – gritou. Abriu os olhos e a boca e o espírito do livro, o dragão invisível, transformou-se numa bola de fogo incandescente, foi arremessado de seu corpo e jogou-se sobre os originais do livro. Seu rosto caía pesadamente sobre a escrivaninha, enquanto seu espírito livre revoava sobre a mesa, nas asas do dragão. A asa esquerda do dragão bateu na janela, quebrando o vidro. Entrou uma lufada de ar. Respirou profundamente. Esse ar que entrava pelo vidro quebrado lhe fazia bem, muito bem, devolvia-lhe a vitalidade.

Abriu os olhos. – Vou chamar um médico – disse Irineia.
– Não, não... estou bem. Só preciso ler.
Irineia olhou-o com assombro. Roberto abriu o livro e leu a primeira página. Sorriu.
Irineia... Irineia.... – disse com voz quase carinhosa. Irineia, estou lendo e pensando... já somos quase velhos, Irineia, passamos tantos anos trabalhando juntos... tantos anos. Olharam-se em silêncio.
– uero dar a volta ao mundo. Quer viajar comigo, Irineia?
– Como sua secretária?
– Sim...Não! Não! Viajar comigo.... você sabe... você sabe, Irineia... Nós nos damos bem... nós gostamos dos mesmos livros.... vamos envelhecer sozinhos.... e envelhecer sozinho, é tolice, não acha? Vamos compartilhar nossos últimos anos? O que diz, Irineia?

Irineia chorava como uma criança que, no Natal, ganha um presente inesperado de Papai Noel. Só conseguiu enxugar as lágrimas. E sorrir.

Conto de Isabel Furini, recebeu Menção Honrosa no Concurso de Contos Paulo Leminski, de Toledo.
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