Sandoval levantou a ponta da camisa vermelha,
desabotoada, odorosa e limpou o suor da testa. Tocou uma música antiga no
violão. As mesas estavam vazias, menos
uma. Os quatro fregueses aplaudiram com entusiasmo. O de chapéu marrom empurrou
uma garrafa com o cotovelo enquanto aplaudia. A garrafa caiu no chão fazendo um
estrondo. O dono do bar, que empilhava as cadeiras, parou o trabalho e disse: - Vou fechar, senhores, voltem a noite.
Abrimos as 20:00 horas..
Sandoval
guardou o violão e colocou o casaco.
Havia bebido com o desespero de um beduíno depois de atravessar o
deserto do Sahara. Parecia um sedento.
Uma verdadeira esponja jogando, goela abaixo, copos e mais copos de bebida Primeiro foi a cervejinha, logo uma garrafa
de vinho oferecida por amigos e depois a caipirinha... Eram três da manhã, o
bar fechou e o bêbado caminhava - entenda-se cambaleava - para sua casa.
Andou e andou. Passos lentos, movimentos desengozados, ao
virar a esquina tropeçou com latas de
lixo e caiu na calçada. Conseguiu levantar-se.
A Praça Rui Barbosa, pensou, estou perto de casa... Sentiu desejos de
urinar. Apoio-se numa árvore e começou a fazer xixi.
-
Ei, você me está molhando.
Sandoval
abriu grandes os olhos. Não havia
ninguém por perto a não ser um pato. Por pura diversão começou a molhar
o pato. Gritando: Chuva, patinho! Tá chovendo,
chovendo.
-
Seu safado, você deve estar bêbado para fazer isso! - reclamou o pato.
-Estou... sim.. sim... -
afirmou o Sandoval. -
Você fala, pato?
O pato não respondeu. Começou a choramingar:
- Ninguém gosta de mim. Assim não dá. Minha vida não vale um tostão. Eu sou um
pobre pato sem família. Ninguém me ama.
- E eu com isso? -
perguntou o Sandoval.
-
Nada... você não tem nada com isso. Desculpe
- disse o pato. E
começou a chorar. Era um choro de pato, mas dava para entender que estava
triste. Era um choro longo, agudo, um Cuaaaaaac.... cuaaaaaac.... entre lágrimas.
-
Ei, camarada - disse o
Sandoval para o pato que afastava-se em
pranto - Quer uma
cachacinha? - E tirou uma
garrafa pequena do casaco. -
É o que uso para apagar as mágoas.
- Obrigado, disse o pato -¾
tomando um trago, enquanto o homem assegurava a garrafa -Você é generoso...
- Que nada, compadre. Amigo é para essas coisas.
- Você é meu amigo??!!!
- gritou admirado o pato abrindo as asas
e dando um pulo de alegria.
- Claro. Os dois estamos na pior... temos que ser amigos - o bêbado parecia cuspir as palavras enquanto caminhava - Prazer em
conhecer-te pato eu sou o Sandoval, eu sou o rejei... rejitado. Isso. Sou
rejeitado, rejeitado da sociedade. Sou um traste qualquer. Minha vida vale
menos que a vida de um cachorro, de um... uau... - deu o nariz contra um poste de luz. Gritou. O
pato riu.
- Minha vida vale
menos que a vida de um... poste.
- Prazer. Eu sou o Patinho Feio da história de Andersen.
- Você é o Patinho Feio, aquele que no final da história se transforma num bonito
Cisne.
- O mesmo.
- E voltou a ser Pato! Gritou Sandoval
- Eu me transformo em pato sempre que uma pessoa se transforma em algo feio e
esquece tudo o bom que existe dentro dela.
- Dentro onde?
- pergunta o
bêbado
- no estômago ou
no coração?
-Não
seu estômago só tem cachaça - disse o Pato eu falo de seu
coração, cara. Eu falo daquele Sandoval alegre e cheio de entusiasmo. Aquele
que sonhava com coisas boas, o amor, a amizade, o triunfo....
- Se
é assim você continuará sendo sempre um Pato, amigo, porque eu... eu sou um
fracasso e dentro meu só tenho cachaça. Eu tenho coração de cachaça. Não
escutou a canção? - A saliva escorregava pelos cantos da boca.
- Não,
que canção? - perguntou o
Patinho Feio.
O
bêbado começou a cantar e dançar, uma mão apoiada na árvore.
Coração
de cachaça,Me
da um beijo, me abraça,Se
você quer dançar,Só
precisa escutarEsta
música alegre.Revolar.. revolar... Coração
de cachaça...Esta
música arrasaA
negona, o negão,A
polaca tambémTodos
podem dançarAo
som de minha canção.
Coração
de cachaça...
O bêbado parou. Cambaleou. Olhou
fixamente ao pato e disse - eu sei que você nunca escutou porque a
inventei eu mesmo... ontem... Eu era
músico, compositor, poeta, bohemio. todos me criticavam... todos... até minha mãe. Deu um forte eructo.
- Era um direito seu escolher sua vida - disse o pato
- Vivia na bohemia e todos me criticavam - enfatizou as palavra - cr-ti-ca-vam.
Minha mulher, a prefeita, a santinha, a chatinha... foi-se embora. Me
abandonou. Disse que eu era um traste, que não prestava
- bebeu mais um gole de cachaça. Eu moro sozinho numa pensão. Quer passar a
noite lá, pato?...
O pato aceitou. Não tinha mesmo onde ir.
O bêbado apertou os olhos e mexeu a
cabeça, deu alguns passos para a direita e para a esquerda para equilibrar-se.
- Já sei, eu moro do outro lado da praça! - gritou . E lá
foram os dois, o Sandoval e o Pato. Lado a lado. O Sandoval cambaleando, o
Pato, mexendo o rabo para os lados. Os dois com esse andar desajeitado que
assemelha bêbados e patos.
Sandoval colocou o Pato embaixo do
casaco cinza, sujo e desbotado para
entrar na pensão. O dono não permitia animais.
Depois de várias tentativas Sandoval
conseguiu colocar a chave na fechadura e abrir a porta. Entrou no quarto. A
cama estava desarrumada. Espalhadas no chão roupas, garrafas vazias. Os jornais
velhos empilhados ao lado da mesa amarela, onde havia uma marmita que cheirava
a podre e um prato sujo.
-Esta
é minha casa
- murmurou
jogando o Pato encima da cama.
- Você precisa escrever essa música.
- Eu já não escrevo mais - disse o bêbado jogando-se sobre a cama.
- Você vai voltar a escrever... pois eu estou cansado de ser o pato feio por sua
causa. Não entende Sandoval? Eu sou o rejeitado o marginal que vive em cada ser
humano. Ou você acha que o único marginal do mundo? Não! Homem, não. Cada vez
que uma criança é rejeitada no jogo de futebol ou uma menina é chama da de
feia, cada vez que uma pessoa fica
desempregada ou um velho é jogado numa
casa de repouso, cada vez que alguém é humilhado, cada vez que alguém erra ou se sente rejeitado... eu deixo de ser
cisne e me transformo no Patinho Feio.
- Nesta época isso se chama falta de auto-estima. Auto-estima... - interrompeu o bêbado.
- Isso
mesmo! - confirmou o
Patinho feio. - Quando as
pessoas tem pouca autoestima. Quando se deixam vencer, decidem não lutar,
decidem não tentar por medo do fracasso. Quando um homem ou mulher ou criança
ou velho, aceitam a rejeição ou a humilhação
ou se sentem limitados, eu me
transformo de novo em pato. Fez uma pausa, fitou a Sandoval com olhos
brilhantes e continuou: ¾ Por favor, cansei de ser pato. Eu quero ser um cisne.
Escreva essa canção.. Escreva Sandoval.
Faça-o por seu amigo Pato.
Sandoval pensou. Já
tinha perdido seu amor próprio e
o amor pela vida, o que mais poderia perder?
Começou a cantar e dançar: “Coração de cachaça, me da um beijo, me
abraça...” O Pato também começou a dançar encima da cama. E tinha ginga.
Movimentava as alas para os lados
rapidamente e depois as recolhia, deixava o corpo quieto e só mexia as penas da
cauda. Era uma graça!
Sandoval, entusiasmado, cantou mais
alto.
Alguém que estava no quarto ao lado
bateu na parede e gritou: Silencio!! Silêncio!! Fez a maior barulheira. O dono
da pensão bateu na porta. O Sandoval e o pato ficaram calados, olhando-se como
duas crianças sapecas depois de uma brincadeira.
- Eu vou dormir - disse o Pato e
deitou sobre o travesseiro.
Sandoval
não disse nada. Sentou-se pegou um caderno e escreveu muitos poemas e compus
muitas músicas. Músicas alegres e
tristes. Música de zamba e rock. Algumas
davam esperanças, outras entristeciam, outras ainda alegravam. Toda emoção,
todo sentimento, eram transformados em música e em poesia pelo Sandoval.
Dormiu quando a cidade começava a
acordar e as pessoas iam para o trabalho. O ruído da rua se intensificou. Pela janela entreaberta entrava ruído de motores e
buzinas. Fumaça dos carros. Nada atrapalhava o sono profundo de
Sandoval.
Sandoval acordou quatro da
tarde. Lembrou do Pato. Procurou-o pelo
quarto. Não estava. Só achou os poemas e as músicas que havia escrito na
madrugada. E numa das folhas havia uma pegada... podia-se ver claramente o pé de um pato.
Ninguém acreditou na sua história.
Coisas de bêbado, patos não falam, disse seu amigo Joaquim. O Sandoval não se importou. Era ele quem
necessitava acreditar, não os outros.
Nos dias seguintes registrou sua música e levou-a para gravadoras e
estações de rádio. Ao começo poucos se interessaram, mas ele não desistiu. E de
repente as coisas começaram acontecer. Alguém gostou. Um conjunto gravou
“Coração de Cachaça”. Ficou primeira nas paradas. Sua vida mudou. Suas canções tornaram-se
populares. Foi entrevistado várias vezes
na Televisão. Dois meses depois mudou
para um apartamento. Comprou alguns móveis, mas levou sua cama, essa cama onde
o pato tinha deitado. Fez um desenho do pato, o pato branquelo, com lágrimas
nos olhos e o bico para baixo, o que dava um ar de tristeza. Colou a figura
parede do quarto.
Essa noite, antes de
dormir, fixou seu olhar no pato
triste colado na parede. Percebeu uma luz dourada em forma de espiral
saltitar sobre a figura. E viu o pato que havia desenhado, o pato
marginalizado, o pato desprezado, o patinho feio, transformar-se num belo cisne.
Num cisne triunfante.