terça-feira, 5 de junho de 2012

SANDOVAL - Conto de Isabel Furini


Sandoval levantou a ponta da camisa vermelha, desabotoada, odorosa e limpou o suor da testa. Tocou uma música antiga no violão. As mesas  estavam vazias, menos uma. Os quatro fregueses aplaudiram com entusiasmo. O de chapéu marrom empurrou uma garrafa com o cotovelo enquanto aplaudia. A garrafa caiu no chão fazendo um estrondo. O dono do bar, que empilhava as cadeiras, parou o trabalho e disse: - Vou fechar, senhores, voltem a noite. Abrimos as 20:00 horas..
Sandoval guardou o violão e colocou o casaco.  Havia bebido com o desespero de um beduíno depois de atravessar o deserto do Sahara.  Parecia um sedento. Uma verdadeira esponja jogando, goela abaixo, copos e mais copos de bebida  Primeiro foi a cervejinha, logo uma garrafa de vinho oferecida por amigos e depois a caipirinha... Eram três da manhã, o bar fechou e o bêbado caminhava  - entenda-se cambaleava - para sua casa. 
      Andou e andou.  Passos lentos, movimentos desengozados, ao virar a esquina tropeçou com  latas de lixo e caiu na calçada. Conseguiu levantar-se.  A Praça Rui Barbosa, pensou, estou perto de casa... Sentiu desejos de urinar. Apoio-se numa árvore e começou a fazer xixi.
  - Ei, você me está molhando.
Sandoval abriu grandes os olhos. Não havia  ninguém por perto a não ser um pato. Por pura diversão começou a molhar o pato. Gritando: Chuva, patinho! Tá chovendo,  chovendo.
 - Seu safado, você deve estar bêbado para fazer isso! - reclamou o pato.
      -Estou... sim.. sim... - afirmou o Sandoval. - Você fala, pato?
      O pato não respondeu.  Começou a choramingar:
     - Ninguém gosta de mim. Assim não dá. Minha vida não vale um tostão. Eu sou um pobre pato sem família. Ninguém me ama.
      - E eu com isso? - perguntou o Sandoval.
      - Nada... você não tem nada com isso. Desculpe  - disse o pato. E começou a chorar. Era um choro de pato, mas dava para entender que estava triste. Era um choro longo, agudo, um Cuaaaaaac.... cuaaaaaac.... entre lágrimas. 
      - Ei, camarada - disse o Sandoval para o pato que afastava-se  em pranto - Quer uma cachacinha? - E tirou uma garrafa pequena do casaco. - É o que uso para apagar as mágoas.
       -  Obrigado, disse o pato -¾ tomando um trago, enquanto o homem assegurava a garrafa -Você é generoso...
       -  Que nada, compadre. Amigo é para essas coisas.
       -  Você é meu amigo??!!!   - gritou admirado o pato abrindo as asas e dando um pulo de alegria.
       -  Claro. Os dois estamos na pior... temos que ser amigos - o bêbado  parecia cuspir as palavras enquanto caminhava - Prazer em conhecer-te pato eu sou o Sandoval, eu sou o rejei... rejitado. Isso. Sou rejeitado, rejeitado da sociedade. Sou um traste qualquer. Minha vida vale menos que a vida de um cachorro, de um... uau... -  deu o nariz contra um poste de luz. Gritou. O pato riu.  -  Minha vida vale menos que a vida de um... poste.
       -  Prazer. Eu sou o Patinho Feio da história de Andersen.
       -  Você é o Patinho Feio, aquele que no final da história se transforma num bonito Cisne.
       -  O mesmo.
       -  E voltou a ser Pato! Gritou Sandoval
       -  Eu me transformo em pato sempre que uma pessoa se transforma em algo feio e esquece tudo o bom que existe dentro dela.
       -  Dentro onde?  -  pergunta o bêbado  -  no estômago ou no coração?
                            -Não seu estômago só tem cachaça - disse o Pato  eu falo de seu coração, cara. Eu falo daquele Sandoval alegre e cheio de entusiasmo. Aquele que sonhava com coisas boas, o amor, a amizade, o triunfo....
     Se é assim você continuará sendo sempre um Pato, amigo, porque eu... eu sou um fracasso e dentro meu só tenho cachaça. Eu tenho coração de cachaça. Não escutou a canção? -  A saliva escorregava pelos cantos da boca.
-    Não, que canção? - perguntou o Patinho Feio.
O bêbado começou a cantar e dançar, uma mão apoiada na árvore.

Coração de cachaça,Me da um beijo, me abraça,Se você quer dançar,Só precisa escutarEsta música alegre.Revolar..  revolar... Coração de cachaça...Esta música arrasaA negona, o negão,A polaca tambémTodos podem dançarAo som de minha canção.


Coração de cachaça...


            O bêbado parou. Cambaleou. Olhou fixamente ao pato e disse -  eu sei que você nunca escutou porque a inventei eu mesmo... ontem...  Eu era músico, compositor, poeta, bohemio. todos me criticavam...  todos... até minha mãe.  Deu um forte eructo.
            - Era um direito seu escolher sua vida - disse o pato
            - Vivia na bohemia e todos me criticavam - enfatizou as palavra -  cr-ti-ca-vam. Minha mulher, a prefeita, a santinha, a chatinha... foi-se embora. Me abandonou. Disse que eu era um traste, que não prestava -  bebeu mais um gole de cachaça.  Eu moro sozinho numa pensão. Quer passar a noite lá, pato?... 
O pato aceitou. Não tinha mesmo onde ir.
            O bêbado apertou os olhos e mexeu a cabeça, deu alguns passos para a direita e para a esquerda para  equilibrar-se.
 - Já sei, eu moro do outro lado da praça! - gritou . E lá foram os dois, o Sandoval e o Pato. Lado a lado. O Sandoval cambaleando, o Pato, mexendo o rabo para os lados. Os dois com esse andar desajeitado que assemelha bêbados e patos.
            Sandoval colocou o Pato embaixo do casaco cinza, sujo e  desbotado para entrar na pensão. O dono não permitia animais.
            Depois de várias tentativas Sandoval conseguiu colocar a chave na fechadura e abrir a porta. Entrou no quarto. A cama estava desarrumada. Espalhadas no chão roupas, garrafas vazias. Os jornais velhos empilhados ao lado da mesa amarela, onde havia uma marmita que cheirava a podre e um prato sujo.
-Esta é minha casa  -  murmurou jogando o Pato encima da cama.
            - Você precisa escrever essa música.
            - Eu já não escrevo mais - disse o bêbado jogando-se sobre a cama.
            - Você vai voltar a escrever... pois eu estou cansado de ser o pato feio por sua causa. Não entende Sandoval? Eu sou o rejeitado o marginal que vive em cada ser humano. Ou você acha que o único marginal do mundo? Não! Homem, não. Cada vez que uma criança é rejeitada no jogo de futebol ou uma menina é chama da de feia,  cada vez que uma pessoa fica desempregada ou  um velho é jogado numa casa de repouso, cada vez que alguém é humilhado, cada vez que alguém erra  ou se sente rejeitado... eu deixo de ser cisne e me transformo no Patinho Feio.
- Nesta época isso se chama falta de auto-estima. Auto-estima...  interrompeu o bêbado.
-    Isso mesmo! - confirmou o Patinho feio. - Quando as pessoas tem pouca autoestima. Quando se deixam vencer, decidem não lutar, decidem não tentar por medo do fracasso. Quando um homem ou mulher ou criança ou velho, aceitam a rejeição ou a humilhação  ou se sentem  limitados, eu me transformo de novo em pato. Fez uma pausa, fitou a Sandoval com olhos brilhantes e continuou: ¾       Por favor,  cansei de ser pato. Eu quero ser um cisne. Escreva essa canção..   Escreva Sandoval. Faça-o por seu amigo Pato.
            Sandoval pensou. Já  tinha  perdido seu amor próprio e o amor pela vida, o que mais poderia perder?  Começou a cantar e dançar: “Coração de cachaça, me da um beijo, me abraça...” O Pato também começou a dançar encima da cama. E tinha ginga. Movimentava  as alas para os lados rapidamente e depois as recolhia, deixava o corpo quieto e só mexia as penas da cauda. Era uma graça!
Sandoval, entusiasmado, cantou mais alto.
            Alguém que estava no quarto ao lado bateu na parede e gritou: Silencio!! Silêncio!! Fez a maior barulheira. O dono da pensão bateu na porta. O Sandoval e o pato ficaram calados, olhando-se como duas crianças sapecas depois de uma brincadeira.
             -  Eu vou dormir - disse o Pato e deitou sobre o travesseiro.
            Sandoval não disse nada. Sentou-se pegou um caderno e escreveu muitos poemas e compus muitas músicas.  Músicas alegres e tristes. Música de zamba e rock.  Algumas davam esperanças, outras entristeciam, outras ainda alegravam. Toda emoção, todo sentimento, eram transformados em música e em poesia pelo Sandoval.
            Dormiu quando a cidade começava a acordar e as pessoas iam para o trabalho. O ruído da rua se intensificou.  Pela janela entreaberta entrava ruído de  motores e  buzinas. Fumaça dos carros. Nada atrapalhava o sono profundo de Sandoval.
            Sandoval acordou quatro da tarde.  Lembrou do Pato. Procurou-o pelo quarto. Não estava. Só achou os poemas e as músicas que havia escrito na madrugada. E numa das folhas havia uma pegada...  podia-se ver claramente o pé de um pato.
            Ninguém acreditou na sua história. Coisas de bêbado, patos não falam, disse seu amigo Joaquim.  O Sandoval não se importou. Era ele quem necessitava acreditar, não os outros.  Nos dias seguintes registrou sua música e levou-a para gravadoras e estações de rádio. Ao começo poucos se interessaram, mas ele não desistiu. E de repente as coisas começaram acontecer. Alguém gostou. Um conjunto gravou “Coração de Cachaça”. Ficou primeira nas paradas.  Sua vida mudou. Suas canções tornaram-se populares.  Foi entrevistado várias vezes na Televisão.  Dois meses depois mudou para um apartamento. Comprou alguns móveis, mas levou sua cama, essa cama onde o pato tinha deitado. Fez um desenho do pato, o pato branquelo, com lágrimas nos olhos e o bico para baixo, o que dava um ar de tristeza. Colou a figura parede do quarto.
Essa noite, antes de dormir,  fixou seu olhar no  pato  triste colado na parede. Percebeu uma luz dourada em forma de espiral saltitar sobre a figura. E viu o pato que havia desenhado, o pato marginalizado, o pato desprezado, o patinho feio, transformar-se num belo cisne. Num cisne  triunfante.

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